Celina Brod

Sobre as coisas que ninguém diz

Por Celina Brod
Mestre e doutoranda em Filosofia, Ética pela UFPel
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O tempo é relativo. Sentimos o tempo de forma distinta. Quanto mais habituados ao entorno, mais rápido o tempo passa. Quando tudo na volta parece repetir o ontem, vagamos com facilidade entre um pensamento e outro. Vagamos tanto que deixamos de sentir onde estamos. Num piscar de olhos as horas escoam. Cheguei em Providence dia 4 de novembro, quase três semanas, sinto como se fossem três meses. Quando tudo é novo e desconhecido, não há espaço para ficar distraído. A distração rapta o sentido do tempo lento, já a atenção devolve aos nossos sentidos o vento.

Estar atenta ao presente revela sutilezas da convivência, uma delas é que somos permeados de pequenas regras não ditas. Um olhar perdido em uma multidão barulhenta aciona o auxílio de um estranho. Um rosto novo entre conhecidos desencadeia olhares curiosos. Uma pessoa carregando muito peso sozinha convida a ajuda de um pedestre vizinho. Um colega de quarto atarefado aciona nossa vontade de ajudar. Uma cafeteria lotada faz com que alguém arrede sua cadeira para abrir lugar. Nada disso está escrito. São deveres tímidos.

São pequenos detalhes sociais que mudam significativamente algum instante, uma impressão ou um julgamento. Na ausência dessa norma invisível é possível que o desconforto assuma o posto. Na presença de deveres imperfeitos, o aconchego e a confiança marcam o encontro. Essas ações decorativas se estendem até mesmo ao que entendemos por democracia. Em nenhum lugar está escrito quais palavras um líder político deve usar para evitar o ódio. Não existe mandamento para eleitores dizendo quando faz sentido protestar. Não está escrito que o perdedor e o vencedor devem apertar as mãos. Não existe norma que proíba um presidente eleito de pegar carona em jatinho de um empresário amigo. Ninguém impede formalmente um presidente derrotado de ficar em silêncio. Não há regra para fazer pessoas aceitarem o resultado de uma eleição. São apenas detalhes, mas são eles que constroem ou destroem a confiança de uma população.

A confiança não exige concordância de ideias, a confiança é uma sensibilidade anterior que pode coexistir, mesmo que tensionada, com conclusões diferentes sobre o que as pessoas pensam ser a melhor saída para os problemas de uma nação. Confiar é diferente de concordar, por isso o pluralismo é, embora difícil, possível. Digo isso por experiência. Quis a vida que eu dividisse uma casa com um californiano marxista ferrenho. Michael escreveu seu TCC sobre a moral em Marx. Ele critica o capitalismo de cabo a rabo e se auto intitula a ponta mais esquerda da esquerda. Leu Lenin, admira Che Guevara e acha que uma revolução para acabar com a fome, mesmo que radical, se auto justifica.

Ontem, na cozinha, a conversa começou com ele expondo sua dúvida em ser orientado no mestrado pelo seu antigo professor, um libertário de direita. Eu disse que a dialética poderia ajudá-lo no fortalecimento dos seus argumentos e que os libertários possuem pressupostos que são um tanto difíceis de serem contornados filosoficamente. Conversa vai, conversa vem, contei para ele que eu havia escrito minha dissertação sobre moderação e que no último capítulo eu tinha inventado uma peneira heurística para filtrar argumentos radicais em democracias liberais. Resolvemos testar os argumentos dele na peneira.

Descobrimos que tudo é complicado quando se vai mais fundo. Ele passou por cinco critérios, reprovou em apenas um: argumentos que dão ao Estado poder total de interferir na produção, no mercado, na propriedade privada e preços. O resultado me fez lembrá-lo de um elemento: natureza humana. Demos muita risada. Ele agradeceu pela conversa e disse que até a minha volta para o Brasil terá me convertido. Eu disse: “let’s see”. Dividiremos o mesmo teto por nove meses, assim como os brasileiros terão de dividir o mesmo céu. A confiança dependerá dos detalhes não escritos, daqueles deveres tímidos.

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